Cidade Velha
Ronaldo Franco
À mesa
mudo pai
surdas crianças
Silêncio de mulheres
e o absurdo barulho
de pratos e talheres
Dentro do poema
rostos existidos
Na imaginação
gestos insistidos
Qual era a louça de porcelana
que subia a família
na cristaleira?
Por que o petisqueiro
fechava-se
com vergonha?
Quantos botões de Paris
para abotoar pecados?
Quantos
novelos de
linha para
costurar
mentiras?
Quantas índias e portugueses
ensoparam-se
nas mesmas águas de igarapés?
As européias bufavam
o enfado em igarités
As índias enlouqueciam
as direções dos “popopôs”
Ora
Pois!
Os bolsos de linho
trouxeram a sífilis
Enfiaram caravelas
esconderam gonorréias
sob os vestidos de chita
E das batinas
pingaram aflições...
Quantos amores nos sobradões
desceram pela ladeira
passaram pela cruz pela espada
até as severas naves da Catedral da Sé?
Quantos fígados apodreceram
das vidas anotadas
em contas a pagar
em cadernos encardidos
abandonados nas prateleiras sujas
das tabernas?
Quantos moleques amarronzados
saíram
do ventre do saco de farinha
mediram-se
em balcões de quitanda
cresceram
os bigodes por detrás dos leques
envelheceram
os chinelos gastando varandas?
Mulheres nas janelas:
bibelôs de carne
fêmeas debruçadas
em tardes compridas
Que olhos vigiaram as virgens?
(se os escuros
eram convertidos
em mulher...)
Quantas mãos
sonhadas
remexeram seus dedos
nos porões?
Quantas delas
estranhas
abriram pentelhos?
Quanta sacanagem
gerou raças?
Quanto à Cabanagem
foram os lusos
ou os cafusos
em confusão nos espelhos?
Quantos azulejos sujos
com sangue de irmãos?
Quantos azulejos
lavados/lavrados
com mãos estrangeiras?
Quantas casas
guardavam
potes de lágrimas?
Quantos potes
secaram
na sede dos anjos?
Quantas vidas
quebraram-se
como potes?
Quantas mortes
começaram uma cidade?
Quantas inquietudes
sob lâmpadas fracas?
Quantas esperanças
queimadas no querosene?
Quantas caligrafias
incendiadas
e nomes às cinzas?
Onde o fósforo
do amanhã?
No fogo
dos fundos
das redes?
Rede sem pátria mãe
Rede sem pátria filha
- Berço ao vento -
Rede mortalha
na vertigem
do brigue Palhaço
- Tálamo -
em noite de cio
do corpo com a dor
do sangue com o rio
Quantas aldeias
e arcos
deslembrados de pó?
Quantas flechas
sopraram
lamparinas e cabanas?
Quantas sombras
tremeram
no ribombar dos canhões?
Quantas noites
acenderam
claro medo?
Quantos aniversários
dentro das pastilhas
em ilhas de guaraná?
Quais velas
iluminavam crianças?
Em que “Álbum de Recordações”
o menino ainda foge do adulto
no seu bicho estranho -o velocípede-?
Quanta água
para ser pátria d’água?
E quanta água de poço
osso e tutano
na sopa do almoço?
Quantos segredos
abriram
goteiras nas línguas?
Quantas chuvas
íntimas
no bordel das conversas?
De qual rio
suspenso
somos vítimas?
(Do
vidro
de
um
olho
ainda
escorre
esperas
líquidas
para
o
outro
olho
no
fundo
da
ampulheta
invisível)
A pressa subtraída
nos sapatos de água
Visíveis
as corcundas
dos séculos
por debaixo
de capas
Olhares
se conjugam
nos pingos
Numa invenção
de humanidade
molhada
Como são risíveis
as possibilidades
das sombrinhas
e dos guarda-chuvas
sob os barcos de nuvens
Que prisão tem a chuva
se quando cessa
continuamos dentro dela?
Ó tempo: o nome do avô
de meu pai
xxtraviado
Ó tempo: paredes
respiram
1616
vezes
por
um
janeiro
desencarnado
Ó tempo: 300 anos
em espíritos
sem livros
Ó tempo: no papagaio
de papel
chinando
Ó tempo
Órfão: sem o berro
do Ruy
para salvar
vozes da sombra
Ó tempo
Veloz: a vida
no cerol
se cortando
Ó tempo
por cima
das árvores
Invisível como vento
movimenta as folhas da carne
e sobe em resma de sexo
Qual “sol nascia para todos”
na São Jerônimo
brilhava num Generalíssimo
com botas de trilho
iluminava o largo
vestido de paletós alvíssimos?
Que bondes seguiram
Bruno e Pinagés
seguindo vaginas
pelos cantos do Umarizal?
Qual árvore decorou os poetas?
Quantas folhas dobraram versos?
O poema aqui nasceu vegetal?
Nem sempre escutado
O galo e sua ópera encharcada
lavava os homens de Madalena
nos quintais de pedras
onde manos enterravam o catecismo
e manas descobriam desejos
Menina
se negava a Pedro do Armarinho
(Nem sempre escutada)
Moça
se adiava a Pedro do coração
(Nem sempre escutada)
Mulher
se calava com qualquer um
Cobriam-se escravas
com o sudário de perguntas
tapando-lhe as bocas que choravam
Semanas santas
sossegavam feridos encontros
Rádios gritavam
três mil horas de agonias
Cristos mortos
eram escoltados
por tristeza mortal
Sobre nossas cabeças
qual século crucificado?
Que calvário
estreitou as ruas do sol?
As rótulas das janelas
ensangüentadas
abriam-se
ao fedor do mênstruo da espera
mas o que fedia
era o dia morto de tédio
Que data como fruto
foi mordida pela fé?
Em que noite
plantamos o choro?
Qual outubro
chamou Nazaré?
Que Pajé
engoliu as moscas?
Qual demônio nos ensinou
a “fazer mal às moças”?
Que santo rezava
o “sem meter”
nas promessas entre coxas?
Em que (a) Deus
as mães pregaram os filhos
os pais cruzaram os braços?
Quantos sorrisos sonsos
sobre a penteadeira
da boca vencendo a cor?
Quais gavetas
entulhavam ausências
e traições de alfazema?
Quantos amarronzados
fingiram-se de brancos?
Quantos assumem o pardo
desde Castelo Branco?
Quantos pardos
quando tipóias
juntaram os ossos do amor?
De quantos bichos
os morenos vestiram-se
para serem
humanamente despidos?
Por quantas coxas
a serpente negra passou?
Que santo rezava
o “sem meter”
nas promessas entre coxas?
Em que (a) Deus
as mães pregaram os filhos
os pais cruzaram os braços?
Quantos sorrisos sonsos
sobre a penteadeira
da boca vencendo a cor?
Quais gavetas
entulhavam ausências
e traições de alfazema?
Quantas cidades na Cidade Velha?
(Pressa das letras
para erguer palavras)
Quais telhados cobrem o amém?
- As nuvens passando
Qual cidade pariu Belém?
- A Lua. Uma incessante Lua.
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